19/04/2010

Quimera da roleta

Por Jaqueline Bueno


Criança é criativa porque não se preocupa com o julgamento de ninguém. Simplesmente vive aquilo que pensa, sonha e acha. E depois de já ter vivido essa fase tão empolgante da vida, resolvi recordar uma das minhas aventuras infantis.

A roleta, a roda, a engrenagem, a... a... aquela coisa que passou a atormentar os meus dias e me tirava o sono. Aquele monstro cheio de graxa que de repente se tornava um monte de metal com um buraco. Ouvi sobre essa abominável criatura em um fim de semana de amoras.


Naquele dia, na casa da minha tia, joguei bola no campinho com meus primos, ‘roubei’ umas amoras na casa do vizinho, três quadras a frente – não tinha idéia de distância para se considerar uma pessoa como tal – e ao voltar, umas das brincadeiras que nos divertia era lambuzar a boca com fruta espremida entre os dedos e chegar gritando: “Aii!! Eu cortei minha mão”.

E lá vem minha tia. “Semana que vem vamos ao centro da cidade, mas teremos que passar pela roleta ao tomar o ônibus. Como vocês ainda não são adultos terão que passar por baixo e segurar firme nos ferros para não cair”. Foi a última frase ouvida antes de penetrar naquele mundo obscuro, naquele pântano da cidade perdida, nas trevas.

O objeto de forma arredondada perturbava minha mente e bloqueava qualquer tentativa de criação. Só tentava entender como seria aquilo que minha tia falava. Naquela época, tomar o ônibus era uma novidade, assim como andar de avião ou de barco. Nada havia me consumido tanto tempo como a roleta. O cérebro passou a trabalhar dobrado; imaginava vários modelos e comecei a ensaiar como passaria por cada um deles.

Pensava: se fosse um círculo giratório pularia como os leões no círculo de fogo. Se tivesse semelhança com a bola de futebol tentaria murchar a barriga, grudaria os braços no corpo e me arrastaria. Mas então vinha um pensamento que me cegava. E se essa roleta for perto da roda? Como eu vou fazer? E minha roupa? Como será que as outras crianças fazem para entrar lá? Deve ser por isso que não precisamos pagar.

Na escola só conseguia desenhar diversas formas desse “bicho” e, em silêncio durante sete dias, inconformada e triste, a minha mente parecia uma caldeira em ponto de ebulição. Olhava para o relógio e pedia para os ponteiros andarem mais lentamente para dar tempo de descobrir a origem da roleta, analisar cada letra daquela palavra e estabelecer sua forma, uma analogia qualquer com um objeto próximo e uma maneira para não sofrer nenhum dano até chegar ao centro da cidade. Meu peito doía, comecei a ter um sentimento estranho pela minha tia. Não comia direito e aquele barulho trerec! trerec!trerec! tocava no mesmo ritmo do tic-tac.

No ponto de ônibus, no sábado de sol muito quente, não suava pela temperatura, mas por causa do medo. Minha tia segurava a minha mão e a da minha prima com força, parecia que era para não fugirmos. Enquanto aquela menina de rosto gordinho, cabelo enrolado e estrábica sentia uma felicidade imensa, eu sentia pavor e continuava a suar ao olhar para as placas e enxergar todas as formas de roleta pensadas até o momento.

Ao longe ouvia o ranger dos motores do longo veículo que levava crianças apertadas naquela coisa desconhecida e apavorante - só porque elas não podiam pagar. Meu coração batia cada vez mais forte, enquanto o ônibus branco com faixas azuis se aproximava. Uma senhora, que também aguardava a chegada do ônibus, acenou para o motorista e uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Todas as imagens dos finais de semana perambulavam pela minha mente. O último som ouvido foi o do ônibus parando.

Hoje minha relação com a roleta tornou-se banal e sem graça, assim como muitos seres desconhecidos da minha infância. Talvez as rodas, as engrenagens e os círculos voltem a fazer parte da minha vida, um dia.

*Publicado em maio de 2009.

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